A Última Iguana (3)
A parte difícil seria roubar a iguana, a parte trabalhosa seria levá-la para Lasthope e vendê-la por um bom preço. William Ashton vivia numa casa velha quando podia ter um palácio, vivia como todos os outros sendo o homem mais rico da região. Era no mínimo uma excentricidade.
John Carson-Smith sabia que a melhor altura para o roubo seria quando Ashton estivesse num período de sono criogénico. Ele não tinha ninguém a ocupar a sua casa nos seus períodos de letargia, ou melhor, possuía uma espécie de guarda, apenas. O guarda não era obstáculo, mas o sistema de alarme que a mansão possuía era um osso duro que tinham de roer...
- O Malcolm pode obter a planta da casa...
- E o Kevin o esquema do alarme...
- É sempre bom ter amigos. – John sorriu-se com a ironia de Bill. Sim, era bom ter amigos, ainda que fossem quase todos como as serpentes.
Andrew Scobar coçou a careca duas vezes e olhou para a porta entreaberta. Abrira-se com o vento ou alguém a abrira? O alarme não tinha soado. Dois e dois sempre foram quatro e Scobar concluiu que o vento do deserto forçara a velha fechadura da porta da varanda. Quando se recordou que o alarme também funcionaria com este acaso já não pôde rectificar a sua atitude. O pobre cérebro gasto de Andrew Scobar, guarda privado da mansão de William Ashton, não soube que uma coronha duma arma tinha atingido o crânio do seu dono.
Bill Morton falou em surdina.
- Este já não é problema e o velho está a dormir. Só temos de procurar o bicho.
- Procura na ala oeste, eu procuro na outra.
As escadas rangeram quando John castigou os degraus com os seus pés. Reparara que não havia pó em lado nenhum apesar da aparência vetusta de todos os objectos que enchiam aquela casa. Parecia existir um véu protector sobre eles que desintegrava as partículas de poeira e os grãos de areia dourada. O aspecto geral era estranho e as mais pequenas coisas pareciam transportar John para séculos atrás, quando o deserto era uma criança e ainda havia vida e árvores pelos campos.
Olhou demoradamente os móveis de madeira verdadeira, admirou os reposteiros de veludo vermelho de sangue e continuou a explorar a multidão de salas e quartos que pareciam não acabar. A velha mansão parecia bem mais pequena vista de fora; afinal William Ashton não vivia como os outros...
Reparou no pequeno espelho com moldura em madrepérola repousando no toucador antiquíssimo e decidiu metê-lo no bolso. Sempre usara roupa com bolsos generosos, sempre úteis quando a ocasião era propícia. John Carson-Smith não era um ladrão mas sabia aproveitar os lances do acaso. A voz nas suas costas soou profunda e firme.
- Dou-lhe os meus parabéns, desconhecido. O meu alarme não é para brincadeiras nem se compadece com amadores, depois tem de me explicar como conseguiu.
Voltou-se lentamente, com a respiração suspensa pela surpresa. O velho! Mas como, meu Deus?!
William Ashton leu a surpresa nos olhos de John e adivinhou a pergunta que este fizera interiormente.
- Porque é que não estou a dormir, é o que você está a pensar! Eu nunca durmo, senhor...?
- Carson-Smith... – balbuciou John.
- Sim, sim, mas o seu nome próprio, qual é?
- John.
- Muito bem, John! Antes que pense em me abater com essa arma que tem no bolso deixe-me perguntar-lhe o que deseja de mim ou da minha velha casa, dado que se deu a tantos esforços para nela entrar furtivamente.
Perante o silêncio de John o velho deslocou-se sem ruído até um dos sofás da sala e sentou-se lentamente.
- O que tenho eu de tão valioso que vale o risco que correram neste mundo de tédio? – um arrepio de medo percorreu o corpo de John Carson-Smith. "Correram"? – Sim, o seu amigo, não é? Escusa de se preocupar com ele. Teve o azar de entrar numa sala armadilhada...
- O Bill morreu?
- Chamava-se Bill? – abriu uma pequena caixa e tirou de lá um charuto que acendeu de seguida – Sim, de facto o seu amigo morreu, foi uma pena... Chame-lhe destino, se quiser.
- E assassínio, posso chamar-lhe assassínio?
- Se o desejar, mas qualquer administrador de justiça concluirá pela legítima defesa; bem vê, ele estava em propriedade alheia...
A paciência de John esgotou-se.
- Onde está a iguana? – disse, apontando-lhe a arma.
- Só podia ser isso! Como sou estúpido! Era evidente o motivo, a única coisa que na realidade vale este risco é a iguana. Quem foi que deu com a língua nos dentes? – Ashton não esperou por uma resposta – Foi o vendedor certamente. Aquele homenzinho é sem dúvida um hábil explorador dos desertos mais recônditos, mas não sabe manter-se calado.
- Onde está a iguana? – insistiu John, cada vez mais nervoso.
- Tenha calma, eu dou-lhe a iguana! A iguana não vale a minha vida. – levantou-se do sofá e caminhou em direcção à porta – Nem sequer valia a vida do seu amigo... Venha comigo e eu dou-lhe o animal.
Seguiram por corredores sombrios onde a luz entrava a medo, corredores infindos que levavam a salas donde partiam novos corredores. A mansão era um labirinto e a John cada vez parecia menos possível que tudo aquilo coubesse na fachada que ele vira varrida pela luz rasante do crepúsculo. Qualquer coisa muito errada existia ali, entre aquelas paredes estranhas.
- Não me explicou a razão porque está sempre acordado.
- Há muito tempo, toda a gente vivia o ano todo.
- Eu sei, mas nessa altura existia alimento para todos e o mundo não era um mar de areia. – o velho riu-se.
- Nem nessa altura chegava para todos, John; muitos morriam de fome.
- Mas os outros viviam... Ainda não me respondeu.
O velho deteve-se junto a uma porta igual às outras, tirou uma chave do bolso das calças e abriu-a. Uma luz estranha invadiu uma parte do corredor.
- Aqui, tudo é maior do que parece. Maior ou mais longo, como a minha vida. Não quer entrar?
John Carson-Smith apanhou outro susto quando viu o interior da sala. Agarrou Ashton pela gola da camisola para que não fugisse para longe.
- Acalme-se homem, isto é apenas um holograma sofisticado.
As árvores ao longe tornavam irregular um horizonte de colinas suaves aninhadas na luz do sol e um perfume ténue de Primavera invadia o ar. Um holograma perfeito de coisas que já não existiam na Terra.
- Isto é apenas a gaiola do meu bicho, John. Não se assuste com o que vê, é apenas uma boa ilusão. Só o solo mais próximo é verdadeiro, para além disso estão apenas as paredes de vidro e por trás delas o material de projecção holográfica. Apenas uma ilusão, John.
Os nervos e a temperatura da gaiola faziam John suar abundantemente. Não via a iguana em nenhum lado.
- Onde é que ela está?
- Por aí.
- Procure-a!