30.6.04

A Última Iguana (3)

A parte difícil seria roubar a iguana, a parte trabalhosa seria levá-la para Lasthope e vendê-la por um bom preço. William Ashton vivia numa casa velha quando podia ter um palácio, vivia como todos os outros sendo o homem mais rico da região. Era no mínimo uma excentricidade.
John Carson-Smith sabia que a melhor altura para o roubo seria quando Ashton estivesse num período de sono criogénico. Ele não tinha ninguém a ocupar a sua casa nos seus períodos de letargia, ou melhor, possuía uma espécie de guarda, apenas. O guarda não era obstáculo, mas o sistema de alarme que a mansão possuía era um osso duro que tinham de roer...
- O Malcolm pode obter a planta da casa...
- E o Kevin o esquema do alarme...
- É sempre bom ter amigos. – John sorriu-se com a ironia de Bill. Sim, era bom ter amigos, ainda que fossem quase todos como as serpentes.

Andrew Scobar coçou a careca duas vezes e olhou para a porta entreaberta. Abrira-se com o vento ou alguém a abrira? O alarme não tinha soado. Dois e dois sempre foram quatro e Scobar concluiu que o vento do deserto forçara a velha fechadura da porta da varanda. Quando se recordou que o alarme também funcionaria com este acaso já não pôde rectificar a sua atitude. O pobre cérebro gasto de Andrew Scobar, guarda privado da mansão de William Ashton, não soube que uma coronha duma arma tinha atingido o crânio do seu dono.
Bill Morton falou em surdina.
- Este já não é problema e o velho está a dormir. Só temos de procurar o bicho.
- Procura na ala oeste, eu procuro na outra.
As escadas rangeram quando John castigou os degraus com os seus pés. Reparara que não havia pó em lado nenhum apesar da aparência vetusta de todos os objectos que enchiam aquela casa. Parecia existir um véu protector sobre eles que desintegrava as partículas de poeira e os grãos de areia dourada. O aspecto geral era estranho e as mais pequenas coisas pareciam transportar John para séculos atrás, quando o deserto era uma criança e ainda havia vida e árvores pelos campos.
Olhou demoradamente os móveis de madeira verdadeira, admirou os reposteiros de veludo vermelho de sangue e continuou a explorar a multidão de salas e quartos que pareciam não acabar. A velha mansão parecia bem mais pequena vista de fora; afinal William Ashton não vivia como os outros...
Reparou no pequeno espelho com moldura em madrepérola repousando no toucador antiquíssimo e decidiu metê-lo no bolso. Sempre usara roupa com bolsos generosos, sempre úteis quando a ocasião era propícia. John Carson-Smith não era um ladrão mas sabia aproveitar os lances do acaso. A voz nas suas costas soou profunda e firme.
- Dou-lhe os meus parabéns, desconhecido. O meu alarme não é para brincadeiras nem se compadece com amadores, depois tem de me explicar como conseguiu.
Voltou-se lentamente, com a respiração suspensa pela surpresa. O velho! Mas como, meu Deus?!
William Ashton leu a surpresa nos olhos de John e adivinhou a pergunta que este fizera interiormente.
- Porque é que não estou a dormir, é o que você está a pensar! Eu nunca durmo, senhor...?
- Carson-Smith... – balbuciou John.
- Sim, sim, mas o seu nome próprio, qual é?
- John.
- Muito bem, John! Antes que pense em me abater com essa arma que tem no bolso deixe-me perguntar-lhe o que deseja de mim ou da minha velha casa, dado que se deu a tantos esforços para nela entrar furtivamente.
Perante o silêncio de John o velho deslocou-se sem ruído até um dos sofás da sala e sentou-se lentamente.
- O que tenho eu de tão valioso que vale o risco que correram neste mundo de tédio? – um arrepio de medo percorreu o corpo de John Carson-Smith. "Correram"? – Sim, o seu amigo, não é? Escusa de se preocupar com ele. Teve o azar de entrar numa sala armadilhada...
- O Bill morreu?
- Chamava-se Bill? – abriu uma pequena caixa e tirou de lá um charuto que acendeu de seguida – Sim, de facto o seu amigo morreu, foi uma pena... Chame-lhe destino, se quiser.
- E assassínio, posso chamar-lhe assassínio?
- Se o desejar, mas qualquer administrador de justiça concluirá pela legítima defesa; bem vê, ele estava em propriedade alheia...
A paciência de John esgotou-se.
- Onde está a iguana? – disse, apontando-lhe a arma.
- Só podia ser isso! Como sou estúpido! Era evidente o motivo, a única coisa que na realidade vale este risco é a iguana. Quem foi que deu com a língua nos dentes? – Ashton não esperou por uma resposta – Foi o vendedor certamente. Aquele homenzinho é sem dúvida um hábil explorador dos desertos mais recônditos, mas não sabe manter-se calado.
- Onde está a iguana? – insistiu John, cada vez mais nervoso.
- Tenha calma, eu dou-lhe a iguana! A iguana não vale a minha vida. – levantou-se do sofá e caminhou em direcção à porta – Nem sequer valia a vida do seu amigo... Venha comigo e eu dou-lhe o animal.
Seguiram por corredores sombrios onde a luz entrava a medo, corredores infindos que levavam a salas donde partiam novos corredores. A mansão era um labirinto e a John cada vez parecia menos possível que tudo aquilo coubesse na fachada que ele vira varrida pela luz rasante do crepúsculo. Qualquer coisa muito errada existia ali, entre aquelas paredes estranhas.
- Não me explicou a razão porque está sempre acordado.
- Há muito tempo, toda a gente vivia o ano todo.
- Eu sei, mas nessa altura existia alimento para todos e o mundo não era um mar de areia. – o velho riu-se.
- Nem nessa altura chegava para todos, John; muitos morriam de fome.
- Mas os outros viviam... Ainda não me respondeu.
O velho deteve-se junto a uma porta igual às outras, tirou uma chave do bolso das calças e abriu-a. Uma luz estranha invadiu uma parte do corredor.
- Aqui, tudo é maior do que parece. Maior ou mais longo, como a minha vida. Não quer entrar?
John Carson-Smith apanhou outro susto quando viu o interior da sala. Agarrou Ashton pela gola da camisola para que não fugisse para longe.
- Acalme-se homem, isto é apenas um holograma sofisticado.
As árvores ao longe tornavam irregular um horizonte de colinas suaves aninhadas na luz do sol e um perfume ténue de Primavera invadia o ar. Um holograma perfeito de coisas que já não existiam na Terra.
- Isto é apenas a gaiola do meu bicho, John. Não se assuste com o que vê, é apenas uma boa ilusão. Só o solo mais próximo é verdadeiro, para além disso estão apenas as paredes de vidro e por trás delas o material de projecção holográfica. Apenas uma ilusão, John.
Os nervos e a temperatura da gaiola faziam John suar abundantemente. Não via a iguana em nenhum lado.
- Onde é que ela está?
- Por aí.
- Procure-a!

Cinco Segundos - Capítulo IV: Ariel Montezuma não é Mara Simpson

O cheiro doce impregnava o ar e parecia agarrar-se à pele. A Grande Pocilga Verde que era o sistema de renovação da atmosfera da zona de Bluebank estava mesmo à sua frente, uma grande piscina cheia de bactérias modificadas que produziam incessantemente oxigénio e devoravam nos seus processos uma miríade de venenos do ar. A contrapartida era ter de suportar aquele cheiro enjoativo vários quilómetros em redor do sistema.
A casa de Mara era num dos blocos degradados que rodeavam a instalação, um apartamento num décimo andar certamente sujo e velho, com as paredes descascadas de tinta a gritar por um auxílio que nunca chegaria, canalizações rotas rugindo nos piores momentos e vizinhos tão indesejáveis quanto se possa imaginar. Insectos e ratos é que nem ali existiam, se bem que não fossem dos animais que tivessem deixado mais saudades. A capacidade de adaptação a condições adversas também tem limites...
Na zona da GPV também se acumulavam as fábricas, e os receptores de energia da cintura de satélites alimentadores não se conseguiam contar pelos dedos das duas mãos. A intervalos curtos ouvia-se o crepitar característico que acompanhava as descargas laser de alta potência provenientes dos satélites, o último dos benefícios que o sol entregava à Terra. Quando a energia dos reactores de fusão se tornou insuficiente, o último recurso foi uma cintura de satélites sofisticados que recebiam a energia do sol, a armazenavam e depois transmitiam para os receptores à superfície em curtos impulsos de vários TeraJoule.
Quando ocorrera a última avaria no sistema de coordenação, um feixe de descarga varrera do céu um Megaplane com duas mil pessoas a bordo e a explosão tinha arrasado vários bairros com o seu sopro de energia pura. Nunca se soube quantos morreram mas também, fora os parentes, ninguém se tinha interessado muito em saber.

- O elevador não me parece muito seguro.
- Se eles arriscam, porque não nós? – Rickert entrou no elevador sem luz seguido pelo Massa Lenta. Rugidos de leões de aço acompanharam-nos em toda a ascensão até ao 10º andar. A porta abriu-se alguns centímetros e depois parou. Rickert deu um pontapé na da esquerda e depois empurrou a da direita.
- É o 35?
- Trinta e cinco. – confirmou Rickert.
Ouvia-se música através da porta fechada. Junkmusic do sul, pareceu-lhe. O Massa Lenta tocou à campainha.
- Sim? – tinha os olhos azuis e a música que se ouvia era mesmo Junkmusic do sul.
- Mara Simpson? – ela disse que sim – Podemos entrar? Somos amigos da Kim e gostávamos de lhe fazer algumas perguntas.
Ela tentou fechar a porta mas o pontapé de Rickert abriu-a completamente e atirou com ela pelo chão.
- Mara, a sua atitude não é nada hospitaleira. Só queremos fazer-lhe algumas perguntas.
- E queremos as respostas – acrescentou o Massa Lenta enquanto admirava os bibelots que ornamentavam um pequeno móvel de bambu. Mara afastara-se assustada até ao outro lado da pequena sala.
- Não queremos fazer-lhe mal, só queremos que nos diga o que viu no beco junto ao bordel na quinta feira passada.
- Não vi nada.
- Largaram um homem inconsciente no beco, nessa noite; só queremos que nos descreva as pessoas que o levavam. Não lhe queremos fazer mal mas, se for necessário...
Mara olhou para Rickert e depois para o Massa Lenta. Baixou a cabeça e começou a falar num tom inexpressivo, debitando as palavras como se duma máquina se tratasse.
- Eram três e vieram num jetcar. Foi isso que me atraiu a atenção, não se vêem muitos jetcars naquela zona do Sinheaven. Mas você está enganado – apontou para Rickert – ele não vinha inconsciente, vinham os três bem vivos e despertos. O tipo só desmaiou quando um deles lhe apontou uma arma: houve um clarão e ele caiu, depois arrastaram-no para cima de um monte de sucata e foram-se embora.
- Como eram eles?
- Como é que você queria que eu visse? A única coisa que notei foi o logo no jetcar deles: era o da Aumann-Yoko.
- O da corporação?
- Conhece outra Aumann-Yoko? – ela estava a perder o medo.
- Não viste mais nada, Mara? – ela abanou a cabeça.
- Agora deixem-me em paz.
Rickert voltou-lhe as costas e saiu.
- Um deles era ruivo e o outro era grande e gordo. O que eles abandonaram até era parecido consigo.
- Adeus Mara, obrigado por tudo.
- E então? – perguntou-lhe o Massa Lenta já no elevador – Achas que a partir disto podemos chegar a algum lugar?
Rickert tinha o olhar fixo em alguma coisa para lá do estreito horizonte da cabina acanhada.
- Quem é que conheces na Aumann-Yoko?

- Se me apanham aqui perco o emprego!
- Cala-te Parsons! Continua a procurar.
- Estes ficheiros são confidenciais, Massa Lenta! Tão confidenciais que nem estão informatizados.
- Não lhes convém, afinal todos esses processos são de gente que lhes faz os trabalhinhos sujos.
- Nesta zona. – acrescentou Parsons – Apenas nesta região. A Aumann-Yoko é uma companhia importante em todo o mundo, muito ligada às administrações.
- A Aumann-Yoko é a Administração! – afirmou Rickert.
Parsons não disse mais nada, continuou a remexer as pastas de cartão que enchiam as gavetas dos arquivos.
- Como era mesmo o nome que vos disse?
- Ariel Montezuma. Grande e gordo. Hoje estás com a memória em mau estado, Parsons. Vê lá se não ficas com outras coisas em mau estado...
- Estou a fazer o melhor que posso, Massa Lenta. Hei-de encontrar o processo desse tipo, ele tem de estar aqui. Afinal, ele ainda nos fez um trabalhinho na passada quinta-feira. – a gargalhada que Parsons esboçou morreu-lhe na garganta quando a mão de Rickert lhe filou o pescoço.
- Deixa-o, Rickert! Ele não vale isso e precisamos dele. – Parsons começava a adquirir um tom azulado.
Quando largou o pescoço de Parsons este caiu pesadamente na cadeira, lutando por respirar.
- Só estava a brincar! – justificou-se Parsons depois de recuperar o fôlego.
- Não brinques outra vez, podes magoar-te a sério.
- Que falta de senso de humor. – resmungou.
- Já o perdi há muito tempo.
Seguiram-se vários minutos de silêncio só quebrado pelo restolhar das folhas de papel.
- Encontrei-o! – exclamou Parsons – Copiem o que precisam, é muito perigoso tirar cópias.

- O teu amigo não vai dar com a língua nos dentes?
- Não, é de confiança. Isso além de eu saber muitas coisas que o colocariam numa situação muito delicada.
- Chantagem, em suma.
- Da mais genuína.
O apartamento de Montezuma ficava situado numa zona de classe média, um apartamento acima do que um ordenado vulgar de distribuidor de software da Aumann-Yoko podia sustentar.
Ninguém respondeu quando tocaram pela segunda vez à campainha. O Massa Lenta tirou o seu jogo de gazuas electrónicas de um bolso e começou a trabalhar na fechadura.
- Tenta com uma Pierson-Clark. – disse Rickert.
O projéctil esférico de uma Jeggler fez um buraco do tamanho de um punho na porta do apartamento, passando entre os corpos de Rickert e do Massa Lenta.
- Merda! – atiraram-se para o chão e saíram do ângulo em que podiam ser atingidos.
- Devias ter ficado quieto, Rickert! Agora vou ter de te matar mais ao rato que trazes contigo!
- De total confiança, não era, Massa Lenta?
- Ele não perde pela demora.
- Devias ter-me deixado matar o Parsons, agora é tarde. - disse Rickert enquanto destravava a arma, porque Ariel Montezuma não era propriamente Mara Simpson.

29.6.04

Porque havemos de ser uma só pessoa quando podemos ser tantas?

em homenagem a Ray Bradbury, a todos eles...

William Dailridge nunca fora ele próprio.
Perdera-se algures entre a infância e as borbulhas da adolescência e nunca mais se tinha encontrado.
Cyrill Mathews era William Dailridge e nunca o fora, porque não havia semelhanças entre Will Dailridge e Cyrill Mathews. Sim, é certo que ambos tinham aquele sinal junto ao queixo e eram míopes, mas não podiam ser mais diferentes.
Cyrill encontrou Dalila num túnel subterrâneo, um túnel mal iluminado e bafiento de uma colónia de ratos de esgoto em Marte. Podia ter sido em Io, mas acontecera em Marte. Existem coisas que simplesmente acontecem, como aquela. Cyrill disse: – Olá!-, e olhou os doces olhos castanhos.
- Olá estranho. Donde vem?
- De qualquer lado. Todos os lados são iguais. Tem sede? Podíamos beber um copo, os dois.
Will-Cyrill nunca oferecera um copo a ninguém.
Os olhos castanhos concordaram.
Foi já no bar que lhe perguntou:
- O que faz para não morrer como um rato?
- Sou louco. – disse-o com um sorriso nos lábios.
- E isso é profissão?
- Pode ser, se não se ambicionarem coisas demais. É como ser barbeiro ou astronauta.
Ela atravessou-o com o olhar.
- Não brinque comigo, estranho. Nem sei o seu nome!...
- Hoje chamo-me Cyrill e amanhã também, talvez. O futuro é sempre vago e flexível, não merece ser adivinhado.
- Já tentou um psiquiatra?
- Sim, mas durou apenas dois dias. Não arranjei clientes. – ela sorriu.
- Não duvido, estranho. Não, estranho não! Agora é o homem das mil caras!
Foi a vez de ele sorrir.
- Como quiser, minha cara. Bebamos a isso!
- Sim, bebamos a isso.
Beberam.
- Tenho de ir. Até amanhã ou até nunca, Cyrill.
- Espere... Não me disse o seu nome!
- Talvez Dalila.
- Sim, talvez...
O bar era sujo, mas que se pode fazer quando se está umas dezenas de metros abaixo da superfície, metido num caixão complexo que se alimenta de si mesmo uma e outra vez?
A sujidade de hoje é o pão de amanhã, dizia-se, e era a pura das verdades.
Cyrill morreu a meio da noite, muito antes do nascer do sol que ali embaixo não havia. Will-Cyrill amanheceu John James Jones e barbeou o novo ser, desembaraçando-o da barba ainda de Cyrill.
Cyrill era um tanto bisonho mas John James era alegre. Alegre, de uma alegria da cor do sol das manhãs de Verão. Alegre como a fruta madura pendente das árvores, à espera de ser apreciada. John James disse bom dia a si próprio e lamentou-se por Cyrill Mathews ter bebido demais na noite anterior. Tomou um comprimido para afastar as dores irritantes.
Viu Dalila nessa tarde, e embora John James nunca a tivesse visto, reconheceu-a.
- Talvez Dalila! – cumprimentou.
- Provável Cyrill...
- Cyrill foi embora, partiu ainda ontem para a Terra.
- Não partiu nenhuma nave para a Terra, ontem.
- Ele tinha uma nave só sua, muito rápida, feita de pensamento polido e de cheiro a maresia.
- Já almoçou, estranho?
- Não, ainda não. A propósito, chamo-me John James Jones e confesso que nunca gostei muito desse Cyrill, embora ele me intitulasse seu amigo.
Dalila fascinava Will-Cyrill-J.J., mais ainda do que tinha agradado a Will-Cyrill. Olhava-a extasiado enquanto comia o bife de vaca que já fora certamente invólucro de pastilha elástica e salto de bota velha. Bebeu outro gole de vinho que nunca vira o sol antes de falar:
- Dalila, você é linda.
- E você é louco, John James.
- Já me tenho interrogado, e embora o afirme de maneira peremptória, por vezes julgo que não o sou, não da maneira que você imagina. Acho que sou como as cebolas, tenho muitas camadas, e um dia chegarei à última. O que acontecerá depois disso nenhum deles o sabe.
- Talvez se encontre a si próprio.
- Talvez seja o fim. Ou talvez nunca lá chegue, talvez fique travado num ponto qualquer do caminho.
- Não pense nisso John James, limite-se a viver. – ela encheu-lhe o copo de vinho que nunca crescera em encostas.
Duas semanas depois Xeda Lander continuava com Dalila. Avançavam em pequenos saltos, arrastando o fato pressurizado como uma casca de crustáceo. A voz soou aos ouvidos de Xeda transformada pela máquina, metalicamente distorcida.
- Já tentaste enfrentar-te? Seres apenas tu?
Xeda estacou, ficou hirto dentro da casca, o coração batendo rapidamente para o compensar do terrível susto que saíra das palavras dela.
- Só eu? Porquê? Porque hei-de ser só um? Porque não posso ser todos e nenhum, deitar-me fora e reconstruir-me do nada? Porque não posso ser Deus e ladrão, astronauta, chulo ou poste de electricidade?
- Porque os outros não o são, Xeda.
- Xeda? Quem é Xeda? Eu chamo-me Albert! Albert Epstein, investigador de seguros em férias.
- Está bem, Albert. Vamos voltar, sim?
- Os outros são chatos – disse Albert, e deixou-se levar por ela.
As camadas chegaram ao fim naquele dia. Era um dia como os outros, em nada diferente dos outros, mas Will Mil Nomes levantara-se estranho. Sentia-se vazio, um vazio invulgar que parecia devorar-lhe as entranhas. Não se sentiu muitos, e isso preocupava-o. Vestiu-se e foi procurar Dalila.
- Desapareceram!
- Quem? – perguntou Dalila.
- Todos! Todos eles, esta noite. Acordei vazio, acordei só eu. – a voz era angustiada. – É terrível, Dalila...
Ela afagou-o.
- Mas não é o fim, pois não? Como te chamas agora?
- William Dailridge... O velho Will que há tanto tempo desaparecera de mim. Voltei ao meu mais antigo eu, depois de me ter circum-navegado. É terrível ser-se apenas um. Acho que foste tu Dalila, serviste-me de âncora enquanto afogavas todos os outros. Agora estou só.
- Não estás só, tens-me a mim. Ou será que Will não gosta do que Cyrill e tantos outros gostaram?
- Era a única característica comum a todos eles: todos gostavam de ti, e eu também. Eles eram como os meus cabelos e tu cortaste-mos, Dalila, mas juro que não tentarei destruir o templo que construímos.
Ela sorriu como não sorria há muito tempo. Ele sentiu-se menos vazio de si.

Era uma multidão ruidosa, oculta no nevoeiro de conversas cruzadas que a envolvia e que quase apinhava a passagem. Will e Dalila tentaram contorná-la e não conseguiram. Viram-se rodeados pela conversa e pelas pessoas que a mantinham, tentando furar através do mar revolto de vozes.
- Will, Will Dailridge! É mesmo você?
Will voltou-se.
- Que prazer em vê-lo, há quanto tempo não nos encontrávamos? Que surpresa vê-lo aqui!
William Dailridge não disse nada enquanto o outro lhe apertava a mão.
- Não me reconhece? Foi há uns meses, a bordo da "Schizophrenia". Cyrill Mathews, não se lembra?
William Dailridge continuou sem proferir palavra, nem mesmo quando John James Jones o abraçou, ignorando Cyrill Mathews.
Dalila deu um grito de terror e fugiu, fugiu muito depressa através do corredor mal iluminado e bafiento.
Will Dailridge foi arrastado para o bar, instado a beber consigo próprio.
Que fazer quando a realidade é o pesadelo da noite anterior e os fantasmas dos sonhos se tornam pessoas como nós?
Foi algures em Marte, podia ter sido em Io.

Cinco Segundos - Capítulo III: Testemunhos Avulsos no Paraíso do Pecado

Estava ali sem saber bem o que fazer, esperando que o homem do rosto brutal chegasse a casa. Ao seu lado o Massa Lenta mexia-se inquieto.
- Não sei como é que deixei que me metesses nesta história. Devo sofrer de senilidade precoce. – mandou-o calar com um gesto porque entretanto alguém se aproximava. O Massa Lenta fizera uma pequena consulta clandestina à base de dados populacional da polícia e descobrira o ficheiro do homem. Lucius Esteban, geralmente desempregado e ocasionalmente ocupado em coisas pouco honestas, mas nunca apanhado. O único facto estranho na sua ficha eram duas palavras aparentemente sem sentido naquele contexto: Tidal Wave.
Talvez ele próprio os esclarecesse.
- É ele! – sussurrou o Massa Lenta.
Deixaram-no abrir a porta e depois avançaram da esquina do corredor onde se tinham ocultado. Antes que pudesse fazer alguma coisa tinha o cano de uma arma encostado ao nariz.
- Esta coisa faz um grande buraco, percebes? – ele concordou com um pequeno movimento da cabeça – Então continua caladinho e entra.
Atirou-o para cima de um sofá e colocou os Hu-Yang espelhados.
- Conheces? – interrogou – Ou achas que estás pouco parecido com aquilo que és na realidade?
- Não percebo...
- Já vais perceber. – disse o Massa Lenta esfregando a sua faca na manga do casaco.
- Esse aí, nos óculos... sou eu mas... não percebo!! Como é que estou aí?!
- Amigo: isso era o que nós gostaríamos que nos explicasses. O que fizeste com Vinnie e quem te mandou lá? Foste tu que montaste o dispositivo hipnótico no elevador?
- Não sei do que estão a falar, juro!
- Deixa-me usar a faca. Ele fala logo. – o Massa Lenta avançou para o homem mas logo foi atirado para trás pelo sopro da explosão. No sítio onde estivera a janela havia agora um buraco por onde entrava o ar fresco da noite.
- Merda! Massa Lenta, estás bem? – o Massa Lenta tentava levantar-se ao mesmo tempo que sacudia os destroços da mobília e os pedaços de Lucius Esteban de cima dele.
- Acho que sim, Rickert. – o sangue escorria-lhe dum golpe na testa – Isto foi um rocket da polícia, é melhor sairmos daqui.
- Sim, Lucius Esteban não pode dizer-nos mais nada.
Desceram pela escada até à cave do edifício com os berros dos grabbers cada vez mais próximos.
- Pelos esgotos?!
- Pelos esgotos. – assentiu Rickert – A liberdade paga-se caro, Massa Lenta.

- Eu digo que ele não sabia de nada, acho que foi condicionado como tu. E aquela aparição súbita da polícia não me agradou nada.
- Alarme no ficheiro do Lucius? – o Massa Lenta concordou com um grunhido.
- São armadilhas quase impossíveis de detectar. Nós já éramos intrusos no sistema, era pedir muito que fosse possível detectarmos as suas subtilezas. Eu se fosse a ti não punha mais os pés no apartamento.
- Não o pretendo fazer. Depois disto, só nos resta um caminho.
- Entregarmo-nos?
Rickert olhou de lado para o Massa Lenta e pousou o copo na mesa.
- Vamos começar pelo fim. – o Massa Lenta mostrou sinais de incompreensão – Vamos começar pelo beco anónimo onde apareci. – explicou.
- E se ninguém tiver visto nada?
- Existe sempre alguém que viu alguma coisa, Massa Lenta, convence-te disso. Só é necessário dinheiro se forem sensatos, ou persuasão se pedirem demais. Existem sempre testemunhas, e são elas que nos vão ajudar a desvendar este imbróglio. Mais cerveja?

Rickert parou de repente.
- É este. – disse para o Massa Lenta.
- Então vamos indagar nos restaurantes e bordéis mais próximos.
Não era dos mais miseráveis, mas não tinha o luxo dos que existiam alguns quarteirões mais à frente. Era apenas um bordel normal para quem não era rico e procurava prazer. Existiam centenas como aquele no Sinheaven, todos iguais e diferentes. Rickert conhecia-os bem embora não fosse um assíduo frequentador. Quando se podem ter as coisas de graça não se vai pagar por elas.
- Podemos falar com o patrão?
- A patroa não está.
Rickert olhou para o Massa Lenta e depois novamente para a rapariga da recepção.
- Então queremos dois quartos.
- Querem ver o catálogo?
- Não é necessário, qualquer uma serve desde que o quarto tenha vista para o beco. – ela olhou espantada com a exigência: as que lhe costumavam pôr não tinham geralmente a ver com a localização dos quartos.
- Ok. – entregou uma chave a cada um e dirigiu a sua atenção para o cliente seguinte.
- Diverte-te Massa Lenta.
O quarto era pequeno e cheirava a mofo mas estava razoavelmente limpo. A luz era indirecta e suave e a rapariga não parecia feia.
- O meu nome é Kim.
- O meu não. Trabalhas sempre neste quarto?
- Talvez. Porquê?
- Queria saber se nos tempos mortos olhas muito para o beco.
- Não tenho muitos tempos mortos. Afinal vieste aqui só para me fazer perguntas?
- De maneira nenhuma, – começou a tirar a roupa – mas fizeram um trabalho sujo a um amigo meu há três dias atrás e largaram-no neste beco. Gostava de saber se alguma de vós viu alguma coisa.
Ela também já estava nua e estirada na cama.
- O teu cabelo cheira muito bem. – ela sorriu-se.
- Eu não vi nada, mas a Mara contou-me qualquer coisa. Não lhe dei muita atenção por isso é melhor falares com ela.
- Qual é o quarto dela?
- Não está cá esta semana. Depois dou-te a morada dela mas agora é melhor prestares atenção ao que estás a fazer. – Rickert também achou que devia.

A Última Iguana (2)

- John! John Carson-Smith, o meu amigo com o nome mais digno de um verdadeiro aristocrata! Entra, vem juntar-te a nós.
- Sempre o mesmo Bill... – Bill Morton passava a vida em orgias, excepto quando estava recolhido no abrigo. Aquelas festas eram das poucas coisas que ainda juntavam as pessoas, mas já lhe começavam a fazer sono. Aceitou o copo de vinho que lhe ofereceram (não fora ele que lho vendera?) e foi sentar-se num canto, sem muita disposição para aquilo tudo. Não conhecia a loura que se aproximou e se sentou ao seu lado.
- O meu nome é Inge, qual é o seu?
- Napoleão.
- É um nome bonito. – olhou um tanto incrédulo para ela até compreender que a sua graça não fora entendida. O nome de Napoleão Bonaparte era apenas uma sequência de letras esquecida entre as páginas de um livro velho. Mesmo ele só conhecia a personagem porque numa determinada fase da sua vida vendera réplicas de livros de história antiga. Decidiu estender o mal-entendido e não disse à loura o seu verdadeiro nome.
- Inge também é um nome bonito. – ela debruçou-se sobre ele e beijou-o.

O velho Murphy morrera. Um dos seus companheiros de habitação (Murphy vivia numa velha e enorme mansão) acordara um dia com o alarme do abrigo de Murphy e dera com ele já morto, com todas as funções vitais para além do ponto de não-retorno. Murphy era realmente muito velho...
- Estás muito pensativo, Napoleão... – a loura acordara. Encostou-se mais a ele soltando murmúrios ininteligíveis mas Carson-Smith soltou-se do abraço e levantou-se do chão da sala de Bill Morton. Os campos de batalha dos velhos tempos deviam ser assim, idênticos à sala de Bill depois da orgia do dia anterior. Havia corpos espalhados por toda a parte e um caos desarrumado tomara a liderança por ali. Foi até à cozinha para beber alguma coisa e encontrou Bill a revirar os armários apenas com uma toalha enrolada à volta da cintura. Lembrou-se que estava nu...
- Olá John! Grande festa, ehm?
Encolheu os ombros e compôs uma expressão ambígua para transmitir um misto de enfado e satisfação.
- Sabes qual é a grande novidade?
- Não.
- O William Ashton, sabes, aquele que tem a empresa de transportes para as colónias, – disse-lhe que o conhecia, àquele louco que preferia viver ali quando, com o dinheiro que possuía, podia viver em qualquer colónia exterior – pois fica sabendo que ele conseguiu obter um animal!
- E então, qual é a novidade? Existem muitos empalhadores que possuem antigos exemplares para venda, eu próprio já vendi alguns.
- Não compreendeste, John: o William Ashton tem uma iguana viva, uma iguana que se mexe, que come, que faz tudo quanto uma coisa viva pode fazer!
Ficou a olhar para ele, pouco crédulo, perante a barbaridade que ouvira: um animal vivo! Aquilo era uma coisa que já o interessava. Um animal vivo valia milhões se o conseguisse vender em Lasthope; só existiam dois pequenos obstáculos: ele não era o dono da iguana, e o dono certamente não a quereria vender. Olhou para Bill:
- Lembras-te daquilo que fizemos há dez anos em Sandhill?
- Perfeitamente. Se nos tivessem apanhado não estaríamos vivos hoje, mas sempre pensei que conseguíssemos mais pelo automóvel. Afinal, era uma réplica perfeita de um Ford Traveller de 2060!
- A velha raposa do Murphy descobriu logo que o carro era roubado. Ele até foi generoso, não era costume dele pagar tanto por coisas roubadas.
- Agora não compra mais nada...
- Sim, se está em algum outro lado, deve ser num sítio onde as coisas se obtêm de graça.
- Eles fazem isso no Inferno?
Os dois homens riram-se.
- Qual é a tua ideia? – disse Bill enquanto se vestia.

28.6.04

Cinco Segundos - Capítulo II: O Salto de Quatro Dias

- Imagem estranha! Onde arranjar imagem estranha?
- Consegues passar isso para uma holo ou não, chinês de pacotilha? – o homem pequeno e de pele enrugada pareceu intimidado pelo tom das palavras.
- Ok, ok! Sempre pressa. Vive depressa, morre depressa. Vida curta. – passou por uma anacrónica rede mosquiteira e desapareceu da sua vista levando os Hu-Yang nas mãos trémulas.
"Mesmo vivendo devagar a minha vida será curta", pensou. Estranhou a luz intensa lá fora. Aproximou-se da porta para logo recuar: um hiato de luz, céu limpo, perigo mortal! As sirenes tocavam alto e as pessoas tentavam escapar às radiações venenosas. Nem sempre o tecto de nuvens protegia contra a luz directa do sol... Entraram várias pessoas na pequena loja, fazendo o oscilador que imitava uma velha campainha manual soar continuamente. Tentou evitar os olhares refugiando-se na contemplação da tralha que cobria as paredes da loja. Por vezes os grabbers andavam disfarçados, com implantes de memória a substituírem o d'head. Não era tão eficaz, mas podia ser igualmente perigoso.
O relógio era um velho Seiko de parede, de mostrador holográfico, e não possuía nada de estranho, mas o seu peculiar sentido do pormenor entregou-lhe uma sensação de anormalidade. O que havia ali de tão errado? Eram três da tarde mais vinte e três minutos, do dia 7 de Setembro de... Olhou com mais atenção.
- Ok, ter aqui holo e óculos seus. Pagar 5 unidades.
Tirou o dinheiro do bolso e entregou-o ao chinês. Para onde tinham fugido quatro dias da sua vida?

Examinou outra vez a imagem holográfica que tinha na mão. A sua única pista, se não contasse com a roupa que tinha vestida quando do seu despertar atribulado. Um rosto brutal distorcido por uma qualquer estranha loucura. O ruído que veio da entrada fê-lo levantar-se do degrau em que estivera sentado. Quando avistou a figura esquálida e estranha do Massa Lenta ficou descansado. Era ele a quem esperava.
- Olha quem é! Há quanto tempo não te punha a vista em cima, meu pulha? Desde aquela vez em que te safei dos grabbers nunca mais apareceste.
- Muito que fazer, Massa Lenta, tenho tido muito que fazer.
- Continuas a negociar em tudo o que apareça?
- Existe outra forma de negócio?
- És um vigarista. – tirou uma chave de plasma codificado e introduziu-a na substância gelatinosa que era o canhão da fechadura. Quando os fluxos magnéticos se estabeleceram da forma correcta a porta abriu-se sem ruído. – Entra, não fiques à porta. Nunca se sabe quando pode aparecer um grabber.
A casa estava exactamente na mesma, tanto quanto ele se recordava. O Massa Lenta pousou o embrulho que trazia numa mesa baixa e depois centrou a atenção nele.
- Diz lá.
- Duas coisas: primeiro, quem é este homem, - mostrou-lhe a holografia – segundo, quero ver passar o filme outra vez.
- Rememorização total?
- Sim, dos últimos seis dias.
- Ela era assim tão boa?
- Massa Lenta, não sei como é que ainda conservas os dentes todos.

A sensação de não fazer parte do seu corpo tornou-se mais intensa e transformou-se na única coisa que sentia. A oficina clandestina do Massa Lenta já não aparecia na imagem que o seu cérebro lia dos olhos. Um véu luminoso ocupou-lhe toda a visão por um curto instante, até que pequenos bichinhos começaram a devorá-lo e se transformaram em imagens passadas. Saía do Olho de Lince, o bar de segunda de Sakky, e ouvia os nomes que Vinnie Smolensk lhe chamava. Continuou pela rua saturada de gente, inalando os odores conhecidos e os desconhecidos, empurrando e sendo empurrado, com todos os sentidos alerta para a possível presença de grabbers entre a multidão. Demorou bastante tempo até chegar à tenda do Willie Ashtray, onde costumava almoçar por vezes.
- Vodka, Willie. Duas garrafas. – a resposta apareceu em imagens no pequeno monitor que Willie possuía implantado na testa. Um trabalhinho com ácido na garganta de Willie fizera-o perder a voz. Águas passadas, velhas cicatrizes.
- O quê? – Willie repetiu as imagens – Já não tenho crédito? E porquê, velho nojento?
As imagens seguintes não eram recomendáveis. Pagou-lhe em dinheiro, do pouco que tinha. Os negócios não lhe corriam muito bem ultimamente.
O átrio do prédio onde morava estava sujo como sempre. Chamou o elevador e esperou, olhando pela enésima vez a parede esburacada.
- Boa tarde.
- Boa tarde, – respondeu. Não era hábito um estranho cumprimentá-lo. Entrou no elevador: – Vigésimo.
Quase caiu quando o elevador de alta velocidade estacou repentinamente entre o 12º e o 13º piso. Admirado, dirigiu-se ao painel de comando.
- O que é que se passa? – um curto impulso de luz bateu-lhe nos olhos vindo do olho electrónico de vigilância.
- Pára! Volta atrás cinco segundos. Passa devagar.
A sua voz tornou-se grave e arrastada à medida que repetia a pergunta.
- Mais lento agora!
Quando acabou de formular a pergunta uma sucessão muito rápida de impulsos luminosos penetrou-lhe o cérebro. O que antes parecera uma simples cintilação era na verdade uma mensagem elaborada.
- Hipnotizaram-me! – deixou adormecer a parte de si que se sabia espectador e dispôs-se a ver o resto. – Normal!
Chegou ao seu quarto-apartamento e passou uma tarde entediante até à chegada de Vinnie. Sentiu-se adormecer depois de terem feito amor e viu-se desligado quando a campainha da porta tocou três vezes, dormia ele a sono solto. Dois pequenos toques e um terceiro mais longo.
Estava molhado, a rua estava molhada! Que raio fazia ali depois de ter adormecido enroscado em Vinnie Smolensk?
- Pára, Massa Lenta. É escusado. Alguém me roubou quatro dias da minha vida!

A Última Iguana (1)

Saiu do abrigo criogénico meio entorpecido, esfregando os braços para restabelecer mais rapidamente a circulação. Nos últimos tempos não recuperava tão depressa dos períodos de letargia.
Tomou um banho rápido e vestiu roupa lavada, uma camisa leve e umas calças claras de algodão, um casaco branco de linho sintético e foi arrumar os seus instrumentos de trabalho nas maletas. Ser vendedor nunca fora fácil em qualquer tempo ou lugar, mas naquele mundo à beira do fim tudo se tornava mais problemático. Percorrer desertos infindos para vender uma qualquer maquineta antiquada numa terriola perdida no pó, ressequida até aos ossos pelo sol inclemente, não era uma tarefa agradável; morrer de fome ao sol da tarde por não ter nem emprego nem abrigo também não possuía qualquer atractivo. Entre duas coisas desagradáveis escolhera a que o mantinha vivo.
Corria um Junho incandescente de um Verão que se anunciava eterno. No fim do mês tórrido completaria trinta e quatro anos subjectivos, sessenta e oito anos externos, quase sete décadas da realidade exterior que pouco se alterara.

Passou veloz por Alwaystandingtall, vazia e decrépita, quase coberta pelas dunas amarelas do deserto. A velha bomba de gasolina era das poucas construções que se mantinham totalmente à vista, desafiando o fim comum das suas irmãs de madeira e cimento. Tivera bons clientes em Alwaystandingtall...
Ia dar a volta do costume: primeiro a passagem pelos armazéns do Murphy para ir buscar a mercadoria; depois, já com a carrinha cheia até ao tecto, dirigir-se-ia para Little Heaven, Martinsaw, Human e Dornington, seguidas da melhor paragem do seu périplo: Lasthope. Era a maior cidade da região, bem maior que o sítio onde vivia, Time's'lost.
Apesar do trabalho tentava aproveitar ao máximo o tempo de que dispunha, e que era aliás o tempo de que todos dispunham: dois períodos de três meses em cada ano, um no "Verão", outro no "Inverno". O resto do ano era passado nos abrigos criogénicos, nas pequenas unidades que pareciam sarcófagos, tentando prolongar ainda mais uma vida que já não tinha muito sentido.
Partilhava o seu apartamento com Leon Bursky apesar de nunca o ter conhecido; vira-o apenas duas vezes, quando espreitara pelo cristal transparente da janela do abrigo criogénico em que ele fazia de morto. Era assim com toda a gente: metade dormia enquanto a outra metade se afadigava em sobreviver. No entanto eram cada vez mais os que prescindiam dos seus períodos de vigília e passavam vários anos seguidos nos casulos criogénicos, esperando que ao acordar estivessem num mundo melhor. Pobres diabos que se iludiam com uma esperança que já perecera nas areias quentes do deserto do mundo.
Fixou o olhar na fita negra da estrada e esperou que o tempo passasse.

26.6.04

Cinco Segundos - Capítulo I: Reflexos Irremediavelmente Atrasados

Olhou para o céu cinzento com indiferença e depois baixou os olhos para a mão ensanguentada. Olhou-a como se não lhe pertencesse, iluminada pelo clarão fugaz de uma descarga laser dos alimentadores em órbita. Largou o estilhaço de metal que segurava e deu-lhe um pontapé que o fez deslizar com um ruído surdo pelo pavimento de betão e desaparecer nas entranhas de uma grelha metálica. Limpou a mão às roupas que cobriam o corpo inerte quase oculto pelas sombras densas do regenerador e afastou-se. Não olhou para trás.

O écran de holovisão estava sujo. Pó e gordura. Não é que tivesse alguma importância no ambiente mal iluminado do bar de segunda, mas ele sempre reparara naqueles pequenos pormenores, era como uma imagem de marca da sua personalidade. Manteve o olhar ausente, desfocado, e pensou em viajar para longe. Se o capturassem desta vez esgotar-se-lhe-iam os anos de vida. Sucessivas condenações, a maior parte à revelia, tinham encurtado a sua vida em alguns anos. E ela já não era muito longa no início, pois a sua família era pobre e nunca pudera comprar anos extra. O seu limite actual eram os 32 anos mas, com o crime que cometera, esse limite deveria reduzir-se para um valor inferior à sua idade actual. Não sentia qualquer disposição para ser desactivado e reciclado, nem possuía talento para desempenhar o papel de adubo hidropónico ou revestimento atérmico de satélite alimentador.
- Não estás com muito bom aspecto. – olhou por cima do ombro: Vinnie, com o sorriso amigável número 3 e óculos de sol Hu-Yang espelhados. Modelo Paz Celestial, reparou; reflectiam tudo com um atraso de cinco segundos: quem olhasse para as suas lentes via o passado imediato, as coisas estúpidas que fizera cinco segundos atrás. Ela devia precisar de alguma coisa.
- Metabólicos não tenho, psicotrópicos mal chegam para mim e qualquer outra coisa tens de pagar.
- Mickie, não sejas mau... Tenho os nervos em franja e os bolsos vazios.
- Existem muitas maneiras de ganhar dinheiro, Vinnie, e o meu nome não é Mike.
- Eu gosto de Mickie.
- Eu não. – levantou-se sem olhar para as lentes que decerto o mostravam sentado e dirigiu-se para a saída. – Põe na minha conta, Sakky.
- A tua conta já está tão grande que nem com o dobro dos anos que tens para viver me pagavas. Sou um filantropo numa sarjeta, é o que sou...
Quanto é o dobro de nada?, pensou.
- Porco sujo, rato das sarjetas, grabber nojento! – berrou Vinnie esganiçadamente.
Disse-lhe adeus com a mão e saiu para a luz do dia coada pelo sujo do céu.

Sistema fechado. O desperdício era o sacrilégio e a reciclagem de tudo a obsessão. Sistema fechado: um mundo inteiro tratado como se de uma nave espacial se tratasse, numa viagem sem fim pelas linhas de força do espaço-tempo. Da natureza restava a raça humana, cercada de cimento simples e polibetão, plástico degradável e madeira de imitação, um caldo venenoso que se alimentava de si mesmo. No celulóide obsoleto e nas ROM's cobertas de pó nas bibliotecas jaziam as cenas mortas de todos os animais e plantas que já não existiam. Pensou nos ruminantes de cultura, informes nos seus tanques de desenvolvimento, mas decidiu não os incluir na categoria de animais: tinham sido demasiado manipulados e modificados para que ainda o fossem. E as recriações das estufas, reles adaptações ao ambiente fechado iluminado à custa de lâmpadas Sunray? Não... eram invenções dos homens, pobres aproximações daquilo que tinham sido os verdadeiros ecossistemas.
Olhou outra vez para o pavimento cinzento da Praça dos Dias Dourados. O vidro do quarto estava cada vez mais sujo, o robot que tratava da sua limpeza devia estar novamente avariado. Porque matara ele Serzenko? Demasiado arrogante. Sim, concluiu, fora isso: ele era demasiado arrogante. Deixou de pensar e armou as suas defesas porque o penteado multicolor que avistou lá embaixo não lhe deixou dúvidas: a Vinnie chata vinha a caminho.

A voz possuía um ligeiro timbre metálico:
- Abre Mickie! Eu sei que estás aí! Não venho cravar-te, desta vez. Juro!
Abriu a porta contrariado, o seu estado de espírito não era o melhor para discutir com Vinnie Smolensk.
O cabelo dela mudara de cor entretanto e apresentava agora dois tons de verde de idêntico mau gosto. Atirou-se-lhe para os braços antes de ele ter tempo para se esquivar.
- Meu pobre gatinho, perdoa-me por te ter chamado todos aqueles nomes...
- Vinnie, não sejas ridícula. Entre nós tudo o que existe é algum sexo ocasionalmente, por isso não me interessam de todo os nomes que me chamaste. E escusas de fingir todo esse afecto que ambos sabemos que não é verdadeiro.
- És um desmancha-prazeres, Mickie... – a estalada apanhou-lhe em cheio a face direita e projectou-a contra a cama.
- Não me chamo Mickie. – puxou-a para cima da cama de poliglass e deitou-se sobre o corpo quente. – Ok, Cleo. Se não é droga que queres, deve ser isto.
- Não me chamo Cleo, – disse Vinnie num sussurro.

Tinha a boca seca e uma aproximação de ressaca entoava-lhe estranhos cânticos aos seus ouvidos. Um cheiro a óxidos metálicos saturava-lhe o olfacto. Estava todo molhado. A rua estava toda molhada. Chovera. Que fazia ele na rua depois de ter adormecido enroscado em Vinnie Smolensk?
Decidiu abrir os olhos definitivamente, convencido de que não estava a sonhar. Aquela roupa não era dele, nem de Vinnie! Sentia-se tonto, mas na noite anterior não tomara ou bebera nada. O beco cheio de escórias e sucatas metálicas era parecido com todos os becos de todo o mundo. Necessitaria de algo mais singular para poder perceber em que sítio se encontrava.
Andou na direcção das luzes fortes da rua próxima, cambaleante. Recomeçou a chover sem aviso, gotas grossas que desfaziam o polibetão num trabalho paciente de anos. Ácidos do céu, como lhe chamava o Bernie Borbulhento. A Álea Verde! Estava na Álea Verde, na parte ocidental do sector Bluebank. Os pequenos restaurantes de rua e os bordéis baratos davam-lhe a atmosfera característica das artérias que constituíam o Sinheaven. Deambulou pela rua apinhada, olhando para tudo sem nada ver, o olhar desfocado pelo mistério que não se desvanecia. Parou repentinamente e saltou como um coelho para uma rua lateral. Não soube se eles o tinham visto, nem esperou para saber, porque o d'head dos capacetes negros dos grabbers podia detectá-lo numa fracção de segundo. O seu ficheiro devia possuir prioridade máxima nas chaves de detecção do sistema da polícia. Continuou a correr por ruas secundárias até o fôlego o abandonar por completo. A tontura voltou, mais forte que antes. Encostou a cabeça a um muro sujo e vomitou. Vomitou muito.

O quarto estava na obscuridade e não se iluminou nem quando activou o controlo manual. Entrou com precaução e com a sua faca idi pronta para tudo. Nada aconteceu porém; o quarto parecia vazio e calmo, com os lençóis amarrotados a desenharem montanhas contra o horizonte luminoso da janela. Encontrou no escuro o painel de controlo do quarto e conseguiu reactivar a iluminação.
Vazio! No meio dos lençóis um reflexo metálico chamou-lhe a atenção. Eram os óculos Hu-Yang de Vinnie, mas a imagem que exibiam não era a sua ao aproximar-se da cama: o rosto que enchia as lentes era brutal e tinha uma expressão de alucinado. Estavam avariados. Pegou neles e examinou-os: uma camada seca de uma substância vermelha escura cobria a haste direita dos óculos espelhados; havia sangue na haste dos óculos! Sangue de Vinnie!